Saudade
Bela Feldman define saudade – famosa palavra da língua portuguesa que refere-se ao sentimento melancólico devido ao afastamento de uma pessoa, uma coisa ou um lugar, ou à ausência de experiências prazerosas já vividas – como uma construção social, que se dá tanto a nível de nação, quanto em nível individual do sujeito. Seu interesse em estudar a construção social da “saudade” se deu a partir de sua pesquisa de campo com a comunidade imigrante portuguesa em New Bedford, ao observar como múltiplas camadas de tempo e espaço se entrecruzam naquele cenário. Ela relata:
“Por exemplo, nos enclaves étnicos da cidade, as hortas e os jardins portugueses (símbolos da vida outrora vivida nas pequenas cidades e aldeias de Portugal) contrastam flagrantemente com as grandes estruturas fabris que, na virada do século, estavam na vanguarda da industrialização americana. Ainda que a vida de muitos seja marcada pelos turnos de trabalho fabril, durante o verão, tal qual no fim da época da colheita em Portugal, imigrantes portugueses continuam a ritualizar as suas memórias da terra natal numa sucessão de festas folclóricas regionais. Sobrepondo-se às inúmeras festas regionais, as celebrações do "Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas" (re)inventam a era das descobertas portuguesas no cotidiano americano. ” (Feldman & Huse, 1995, p. 96)
Essa contínua incorporação e superposição do passado no presente talvez seja característica de enclaves imigrantes em qualquer parte do mundo. Aparentemente, as representações simbólicas e as práticas sociais associadas a Portugal, parecendo reproduzir fotografias de tempos e espaços já vividos, podem ser interpretadas como mera nostalgia. No entanto, estas múltiplas camadas de tempo e espaço superpondo significados e valores culturais que estão muitas vezes em conflito são representações dinâmicas da forma pela qual migrantes percebem e confrontam as mudanças verificadas nas suas condições de existência na intersecção de culturas.
Essas representações de múltiplas camadas de tempo e espaço são constitutivas da saudade - uma construção cultural originada no século XVI, que define a identidade (peregrina) portuguesa. De um lado, como parte constitutiva do "eu" ou da pessoa, a saudade tende a ser caracterizada como "a experiência desenraizada localizada entre as memórias do passado e o desejo do futuro" ou, simplesmente, no dizer de um jovem imigrante, como "as memórias que tocam a alma". Essas memórias estão intrinsecamente associadas aos tempos e espaços vividos anteriormente à emigração, ou seja, à "saudade da terra". Por outro lado, como parte constitutiva da memória histórica coletiva de Portugal, ou da "invenção da tradição" (Hobsbawm, 1986), a saudade é narrada como "a essência do caráter nacional português" e, portanto, como sinônimo da comunidade política imaginada.
Ainda cabe destacar que, para Feldman, a nível de sujeito o sentimento de saudade é construído na intersecção com gênero, classe, geração e etnicidade. Em sua pesquisa, ela entende que nem todas as mulheres imigrantes apresentam suas memórias e saudades da mesma forma. Os maiores marcadores de diferença na construção deste sentimento estão relacionados às desigualdades de classe e geracionais.
Fontes
Feldman-Bianco, B. (2010). A taste of Portugal: Transmigração, políticas culturais e a mercantização da saudade em tempos neo-liberais, 10/2010, "Inovação Cultural, Patrimônio e Educação", Capítulo, ed. 1, Massangana, Vol. 1, pp. 12, pp.128-139.
Feldman-Bianco, B. (2009). A Taste of Portugal: Transmigração, Políticas Culturais e Mercantilização da Saudade em tempos neoliberais, 03/2009, Ler História, Vol. 1, pp.105-119, Lisboa, PORTUGAL.
Feldman-Bianco, B. (2006). Marcas da Saudade, 06/2006, Revista Etnográfica, Vol. 1, pp.1-3, Lisboa, PORTUGAL.
Feldman-Bianco, B., & Huse, D. (1995). Entre a saudade da terra e a América: mulheres imigrantes. Estudos Feministas, 96-121.
Feldman-Bianco, B. (1993). A saudade da terra na América: memória cultural e experiências de mulheres portuguesas na intersecção de Culturas, 09/1993, Encontros de Antropologia (Universidade Federal do Paraná e SESC da Esquina), Vol. S/N, Curitiba-PR, PR, BRASIL.
Feldman-Bianco, B. (1992). Saudade, Imigração e a Construção de uma Nação Desterritorializada, 01/1992, Revista Brasileira de Estudos de População (Impresso), Vol. 09, pp.35-49, Campinas-SP, SP, BRASIL.
Feldman-Bianco, B. "Saudade" - 58 Minutos, 1991, direção de Bela Feldman-Bianco, Michael Majoros e Peter 0'Neill. <Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tNbqoZYmsoA>. Acessado por último em 08.09.2020